Eis a mais admirada de todas as virtudes, representada incansavelmente em filmes e histórias. Só que o fato de ser admirada não faz da coragem nem melhor nem pior do que qualquer outra virtude. Coragem num ato criminoso ou maldoso pode ser uma qualidade, mas certamente não é uma virtude. O que estimamos na coragem é, acima de tudo, o risco sem motivação egoísta (cujo ápice é o auto-sacrifício, como Jesus na cruz). Do ponto de vista moral, a coragem só é admirável, quando se põe, ao menos em parte, a serviço de outrem, quando se escapa, pelo menos um pouco, do interesse egoísta imediato. O amor a si, dizia Kant, sem ser sempre condenável, é a fonte de todo mal. E o amor ao outro, sem dúvida, é a fonte de todo bem. Por isso, especialmente para um ateu, a coragem diante da morte é a coragem das coragens, pois ele não pode encontrar nenhum ganho para o seu ato (o paraíso, a outra vida, a face de Deus, recompensas, etc). Mas mesmo a coragem mais comum é, se não um altruísmo, pelo menos um desinteresse, um desprendimento, um distanciamento do ‘eu’. Como traço de caráter, a coragem é, sobretudo, uma fraca sensibilidade ao medo, seja por ele ser pouco sentido, seja por ele ser bem suportado, ou até sentido como um prazer. Mesmo numa ação de puro egoísmo (combater um agressor) pode-se estimar a ação corajosa por significar maior domínio, maior dignidade, maior liberdade, qualidades significativas que dão à coragem valor, mesmo sem ainda ser uma virtude. O medo e a covardia são egoístas (porque, em ultima análise, sempre visam a si mesmo: o medo de ficar sozinho, de fracassar, de não agüentar, etc.), mas virilidade, coragem de guerreiro ou de força física são apenas qualidades que podem pertencer tanto ao patife quanto ao homem de bem. Como virtude, a coragem supõe uma forma de desinteresse, de altruísmo, de generosidade. Coragem, é bom frisar, não é a ausência do medo, é a capacidade de superá-lo, quando ele existe, por uma vontade mais forte ou mais generosa. Não é automático, é força da alma diante do perigo ou do que é difícil. Não é coragem dos durões, é a coragem dos desprendidos e dos heróis. Essa coragem é a condição de qualquer virtude, já que requer, dizia Aristóteles, ‘agir de maneira firme e inabalável’ (a fortitude, como os gregos chamavam, ou ‘força da alma’), mas também uma virtude especial que permite, como dizia Cícero, ‘enfrentar os perigos e suportar a vida e os percalços’. Porque a coragem, notemos de passagem, é o contrário da covardia, de certo, mas também da preguiça e da frouxidão. Nos dois casos é preciso superar o impulso primeiro ou animal que preferiria o repouso, o prazer ou a fuga. Covardia, dizia Alain, é a mais grave das injúrias. Não porque ela seja o pior no homem, mas porque sem coragem não se poderia resistir ao pior em si ou em outrem. Virtude que mais resiste à intelectualidade e ao racional. É indiscutível que sábios e pensadores precisam de coragem para pensar, para ousar, mas o pensamento nunca bastou para dar coragem a ninguém. A coragem, novamente, não é a ausência de medo, é a capacidade de enfrentá-lo, de dominá-lo, de superá-lo, o que supõe que o medo exista ou devesse existir (p.exemplo: numa situação real de risco). Se, por exemplo, pudéssemos nos convencer de que a morte não é nada, como achava Epicuro (ou que é desejável! como achava Platão), não precisaríamos mais de coragem para suportar a idéia de morrer. O conhecimento, a sabedoria ou a opinião dão ou tiram o medo aos objetos, pois, em geral, tememos o que desconhecemos ou o que já sabemos (para os antigos, por exemplo, navegar pelos oceanos desconhecidos era prova de coragem; hoje, é turismo!). Assim, conhecimento, sabedoria e opinião não dão coragem, dão a oportunidade de usá-la ou de dispensá-la. Por isso a coragem não é um saber, é uma decisão, não é uma opinião, mas um ato. É por isso que a razão aqui não basta, como diz Jankélévitch: ‘o raciocínio nos diz o que e/ou se devemos fazer algo, mas não nos comanda a fazê- lo; e menos ainda ele mesmo faz o que diz’. Por isso, a coragem é uma vontade mais determinada, e até mais necessária, diante do perigo ou do sofrimento. Toda razão é universal, toda coragem é singular. É por isso que é preciso coragem para pensar, às vezes, como é preciso para sofrer e lutar, porque ninguém pode pensar em nosso lugar, nem sofrer em nosso lugar, nem lutar em nosso lugar. O que chamamos de coragem intelectual é a recusa, no pensamento, de ceder ao medo, a recusa de se submeter a outras coisas que não à verdade, mesmo que essa verdade seja assustadora e inconcebível. Spinoza chamava de firmeza da alma esse desejo de conservar seu ser sob o exclusivo julgamento da razão, do pensamento. Mas a coragem está no desejo, não na razão; no esforço, não no julgamento. Trata-se sempre de perseverar em seu ser e toda coragem é feita de vontade. Por isso, ela não é bem a virtude do começo, pois continuar é recomeçar sempre e a coragem, que não pode ser ‘nem entesourada nem acumulada’, só continua pela duração do esforço, do querer, do perseverar, apesar do cansaço, apesar do medo, e por isso mesmo sempre necessária e sempre difícil. De qualquer forma, já é corajoso tentar, ainda que a vontade diminua, ainda que a coragem vacile. Uma pessoa de alma forte, lemos em Spinoza, ‘esforça-se por agir bem e manter-se alegre’, confrontando-se sempre com os obstáculos, que são muitos; esse esforço em si mesmo é a própria coragem. Por isso a coragem só existe no presente. Ter tido coragem não prova que se terá, nem mesmo que se tem. Querer dar amanhã ou outro dia não é ser generoso e, assim, querer ser corajoso na semana que vem ou daqui a dez anos não é coragem; são projetos de querer, decisões sonhadas, virtudes imaginárias. Ser corajoso não é amanhã ou daqui a pouco, mas ‘no ato’, no presente, agora. Como dizia Santo Agostinho, o presente é uma duração, muito mais que um instante, uma distensão, sempre proveniente do passado, sempre voltado para o futuro e a coragem é, não será ou foi. Sem dúvida, é necessário coragem para durar e agüentar, para suportar sem quebrar essa tensão que nós somos, ou essa divisão entre passado e futuro, entre memória e vontade. É a própria vida e o esforço de viver; se é o futuro que tememos, é o presente que suportamos (inclusive nosso medo presente do futuro) e a realidade atual de nossa condição. Por isso é preciso coragem para suportar uma deficiência, para assumir um fracasso ou um erro, para ousar, para agir ou para encarar a realidade. Pode até ser que seja preciso coragem para se suicidar e, sem dúvida, sempre é preciso, mas menos, contudo, do que para resistir à tortura ou à uma vida difícil e penosa. Embora a coragem diante da morte seja a coragem das coragens, ela não é necessariamente e nem sempre a maior. É a mais simples, porque a morte é simples. É a mais absoluta, se quisermos, porque a morte é absoluta. Mas não é a maior, porque a morte não é o pior. O pior é o sofrimento que dura, é o horror que se prolonga ou uma dor sem fim. A coragem, portanto, não se refere apenas ao futuro, ao medo, à ameaça, ao risco; refere-se também ao presente, e sempre está ligada à vontade, muito mais do que à esperança. A esperança e a fé só alivia e ajuda aos crentes (os que crêem, tem fé, num futuro bom), ao passo que a coragem ajuda qualquer homem. Lê-se, inclusive em Aristóteles, que a coragem das coragens, a sua forma mais elevada, é ‘sem esperança’ ou até contrária à esperança pelo simples fato de não ter mais nenhuma esperança. Aliás, pode-se temer tudo de quem nada teme. Pois toda esperança dá margem a outra esperança, à espera de algo bom; mas todo desesperado sem temor é absolutamente livre, pois nada espera. O suicídio muitas vezes é uma forma de esperança, pois a morte nada mais é do que uma outra forma de esperança (de livrar-se dos males ou encontrar paz). Aliás, é por isso que o desespero absoluto pode também levar ao pensar com alegria sem nenhum temor e sem nenhuma esperança, uma espécie de loucura que atemoriza aos demais. Corajosos que nos despertam medo, mas que nos evocam a sermos mais corajosos. Guilherme de Orange dizia: ‘não é necessário esperar (ter esperança) para empreender, nem ter êxito para perseverar’; de fato, nada pode impedir o homem de agir, de ousar, mesmo quando não tem nenhuma esperança... Sem dúvida, é mais fácil empreender ou perseverar quando há esperança ou quando o êxito está à vista, mas, o fato é que, quando é mais fácil, tem-se menos necessidade de coragem. Mesmo assim, é bom lembrar que coragem não é temeridade ou estupidez (correr riscos desnecessários). Ela fica entre os limites da temeridade e da covardia: o covarde é submisso demais ao seu medo, o temerário despreocupado demais com a sua vida ou com o perigo. A ousadia, ainda que extrema, só é virtuosa se temperada pela prudência. Spinoza dizia: ‘A virtude de um homem livre se revela tão grande quando ele evita os perigos como quando os supera; ele escolhe com a mesma firmeza de alma, ou presença de espírito, a fuga ou o combate.’ Claro que para todo homem há o que ele pode e o que ele não pode suportar. O fato de encontrar ou não, antes de morrer, o que o vai abater é tanto uma questão de sorte quanto de mérito.
André Comte-Sponville, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Ed. Martins Fontes Resumo e excertos do capítulo IV.